Maria Caetano tinha dezesseis anos de idade quando “botou o pé no sereno”, forma pitoresca de descrever o ato de fugir para se casar — prática comum no Araçá de 50 e poucos anos atrás. Naquela época, tão logo o rapaz passasse a “gostar” de uma moça, pedia licença ao pai dela e iniciava um discreto namoro sob o olhar vigilante dos futuros sogros. Quando, todavia, decidiam sacramentar a união, dispensavam a formalidade: na noite propícia, ela reunia os poucos pertences e saía furtivamente de casa, indo se juntar ao consorte no novo lar para iniciar uma vida que, salvo rotinas óbvias, não diferia muito daquela que conheceu debaixo do teto dos pais. Ou seja: trabalhar na roça (às vezes na pesca), cuidar do lar e tomar conta de crianças.

Duas peculiaridades marcaram esse rito na vida de dona Maria: primeiro, João Caetano pediu-a em namoro à mãe dela, viúva cujo nome também era Maria e que tinha dado à luz outros sete filhos. Segundo, quando os dois decidiram fugir, ela precisou somente caminhar uns poucos metros morro abaixo, pois a casa que o marido construiu era quase vizinha da sua.

Setenta anos depois, a morada ainda está lá. Ganhou melhorias ao longo do tempo, é certo, mas carrega no madeirame pintado em tom de azul a lembrança de quando João e Maria eram apenas um jovem casal começando a vida num povoado isolado do litoral catarinense. Aos 86 anos de idade (faz 87 em novembro) e viúva, é ao abrigo desse recanto tão familiar que dona Maria passa os dias, às voltas com seus bordados. Dali, bastam uns poucos lances de escada — que, a despeito da aparência frágil e dos cabelos completamente brancos, ela sobe sem ajuda, ainda que precise de uma muleta para se locomover — para chegar à residência da filha Braulina, onde faz as refeições e dorme à noite. Não muito mais longe está a igreja católica do bairro, à qual ocasionalmente visita. Outro filho mora mais atrás, no característico amontoado de casas, patamares e acessos estreitos que a topografia íngreme do lugar permitiu estabelecer.

Naquele tempo ninguém casava”, reafirma a proprietária da casa azul, pontuando a declaração com uma risada alegre, daquelas que cativam a gente. Dona Maria sorri ao menor pretexto, transmite simpatia e não se intimida com a câmera (cerca de dois anos atrás, ela fazia parceria com o sobrinho William dos Santos, que criou para si o personagem típico Zé do Araçá e faz vídeos sobre aspectos da cultura local). Sua mãe, ela nos conta, soube da fuga com João Caetano pela mãe deste. As duas, por sinal, eram irmãs. Isolado como estava, não era incomum ao Araçá a ocorrência de uniões consanguineas, fato que só se tornou menos corrente em fins do século passado.

Maria foi a penúltima filha de Maria de Jesus e Tomás Gomes, os quais tiveram duas mulheres e cinco homens. Ela cresceu nas terras que a família possuía no Caixa d’Aço, enseada a nordeste do município que se tornou, em anos recentes, um apinhado e barulhento destino de adeptos do lazer náutico — algo que ninguém que viveu por lá na década de 1930 poderia jamais sonhar.

“Naquele tempo ninguém casava, botava o pé no sereno e saía embora”

Nesse período, Porto Belo era tão somente um pequeno e bucólico povoado; o Araçá, um reduto quase escondido nesta colônia de pescadores. A subsistência era a realidade da maioria da população, com cafezais e roças de mandioca, batata-doce e cana-de-açúcar espalhadas pelas encostas que se precipitam em direção ao mar. Criações de galinha, de porcos e peixes completavam a dieta dos moradores: “Era uma vida boa, a gente trabalhava, tinha de tudo. Colhia de tudo pra comer, não comprava nada”, lembra dona Maria.

INFÂNCIA COMUM

Viver no Araçá, portanto, oferecia às poucas famílias a mesma rotina: subir o morro para plantar e descer à praia para pescar. Sendo assim, além de cuidar de suas lavouras, Tomás colocava redes para capturar peixes, então abundantes nas águas tranquilas da enseada.

Ter sucesso nessas atividades implicava empregar a maior mão de obra possível. Isso significa que Maria e os irmãos começaram a acompanhar os pais na lida bem cedo. “Trabalhei muito na roça, carregava mandioca nesses morros”, confirma, apontando para o aclive logo atrás de sua casa. Aos doze anos, ela forneava farinha de mandioca, atividade penosa que iniciava de madrugada e ia até o fim do dia. Existiam muitos engenhos no Araçá e era costume as famílias trabalharem em vários deles, processando a própria colheita ou ajudando na dos vizinhos. Henrique, seu futuro sogro, tinha um na Ponta da Enseada e seu irmão Dodô (diminutivo do singular nome Dominador) construiu outro no Caixa D’Aço. Henrique também possuía uma salga e, naturalmente, Maria ajudou a secar muito peixe, especialmente cação, que um comprador de Porto Belo ia buscar de carroça.

Apesar da infância dedicada aos afazeres, sobrava tempo para ser criança. Maria se reunia com as amigas para brincar de cozinhado (“hoje em dia, as meninas nem querem saber disso”, recrimina). O esconde-esconde também era um passatempo popular e havia quem viesse de Porto Belo para se juntar à turma do bairro. Os estudos, por outro lado, foram poucos — muito em virtude da necessidade de trabalhar, agravada pela perda do pai enquanto ela ainda era pequena. Tomás tinha em torno de 50 anos quando morreu, deixando Maria de Jesus com a prole considerável para criar. Algum tempo depois, a matriarca trouxe todos para a chamada Segunda Praia, próximo de onde atualmente Maria Caetano vive e onde, aos treze anos de idade, iniciou namoro com João.

A FUGA

A viúva trazia os filhos na rédea curta. Por isso, quando João Caetano pediu a ela para “gostar” de Maria, foi logo advertido: namoro, só dentro de casa. Com isso, o moço passou a frequentar a residência da futura esposa nas tardes de sábado e domingo, despedindo-se após as primeiras horas da noite. Poucos minutos depois, já chegava à casa dos pais, visto que seu Henrique morava na parte de baixo da encosta, do outro lado da trilha que fazia as vezes de rua principal. A casa de madeira ainda está de pé e fica defronte à atual residência de dona Maria, separada desta pela estrada asfaltada que substituiu o antigo caminho. Está bem menor do que foi antes, reduzida a praticamente um cômodo, e curiosamente ostenta a mesma cor azul. É usada como cenário para os vídeos de Zé do Araçá.

João e Maria namoraram durante três anos. Nesse meio-tempo, o pescador construiu uma casa para si, no terreno onde antes havia um gramado usado para quarar roupa. Rapaz cioso, já tinha providenciado a mobília, então tinha tudo pronto para quando decidissem efetuar a “fuga”. Uma operação delicada, em virtude da proximidade das famílias, mas facilitada pela escuridão, já que luz elétrica não havia.

Aconteceu da seguinte maneira: “Eles foram dormir, a gente combinou tudo, né? Aí, quando chegou a hora, peguei as roupas e me mandei pra baixo. Ele já estava me esperando na rua”. No dia seguinte, Maria de Jesus soube por Braulina, sua irmã e agora sogra da filha, que o casal se instalara na vizinhança. Nem uma nem outra fez qualquer objeção.

Após quatro dias de idílio, os recém-ajuntados voltaram à realidade: Henrique tinha uma colheita de mandioca para levar ao forno e os dois concordaram em auxiliar. Seguiram até o engenho na Ponta da Enseada, na atual divisa com o município de Bombinhas, e ajudaram a encher o paiol com quase cinquenta quilos de farinha. Após isso, tudo seguiu no ritmo de sempre: Maria cuidando da plantação (“eu colhia amendoim, cebola, repolho, colhia de tudo”) e João inspecionando as redes que punha nas proximidades da ilha das Galés. Até então, essa operação era feita com barcos a remo ou a vela. Algumas décadas depois, os filhos e netos deles seguiriam milhas de mar adentro em embarcações muito maiores, fazendo parte da crescente indústria pesqueira do bairro na condição de patrões de pesca.

“Quando chegou a hora, peguei as roupas e me mandei pra baixo. Ele já estava me esperando”

Algo em torno de um mês mais velho que a companheira, João era moço direito. Dedicado ao trabalho e suave com os filhos. Questionava Maria sempre que ela endurecia com as crianças. A esposa, porém, seguia a cartilha de sua mãe. Quando as filhas ficaram moças, entretanto, era o pai quem determinava: podiam passear aos domingos, desde que estivessem em casa antes das 17 horas. Para ir aos bailes em Canto Grande, só na companhia de alguém de confiança.

O casal teve oito filhos, cinco dos quais eram mulheres. Aldo, o primogênito, nasceu mais ou menos um ano após o casamento. Maurina veio em seguida. Uma conta mais precisa incluiria uma outra criança, que não vingou. Aos três meses de idade, ela contraiu pneumonia. Como não havia recurso no bairro, Maria tomou o menino nos braços e caminhou mais de quatro quilômetros até o centro de Porto Belo para conseguir ajuda. Não era a primeira vez que a mãe fazia o percurso. Fosse para comprar mantimentos, fosse para buscar auxílio médico, o destino dos moradores do Araçá era sempre o centro da cidade. E já que também não havia carro no bairro, o jeito era ir a pé ou de barco.

O farmacêutico que acudiu a criança (o homeopata e vulto local Gualberto Leal Nunes) deu-lhe uma dose de remédio, que era só o que podia fazer. No caminho de volta, o bebê expirou. “Morreu no meu colo”, recorda a mãe. João, que havia saído para pescar, chegou a tempo apenas de ajudar a providenciar o singelo funeral.

Passado o pranto, o casal tocou a vida. Os filhos cresceram, tomaram seus rumos. O bairro mudou, ficou pequeno para tanta gente, apertado para tantos veículos, movimentado no verão, os alto-falantes das potentes lanchas de recreio perturbando a calmaria do fim de tarde. Após cinquenta anos de convívio harmonioso (“nunca que discutimos”), João viu a hora chegar. Tinha 79 anos de idade quando se despediu, vítima do que chamavam “tropisia”, mais popularmente conhecida por “barriga d’água” — ou, preferem os médicos, cirrose hepática. Próximo dia 11 de dezembro marca os dez anos de sua morte.

Dona Maria Caetano fez a única coisa que lhe cabia: seguiu em frente. Não está sozinha, pois os filhos e netos se mantêm por perto. Também não parece muito inclinada a remoer amarguras: é ativa, conversadeira e disposta a visitar os parentes que moram em outras localidades quando possível. O sítio de Maurina em Camboriú é seu retiro predileto, de alguma forma lembra o Araçá de antigamente. Mas tudo isso ela faz com uma condição: a de poder voltar para casa ao final de cada jornada e manter os pés firmes no Araçá. Pois é aqui que ela sempre viveu e é onde pretende descansar: “Daqui eu não saio”, garante. E quem vai discordar?

(*) Entrevista concedida em 02 de julho de 2018.

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