Fazia pouco tempo que Telma Cristina Issa de Freitas estava morando em Porto Belo. Ansiosa por ser útil na nova cidade e contribuir com a sua experiência na causa que defende, procurou a Assistência Social do município. Ofereceu-se para, voluntariamente, compartilhar seus conhecimentos, mas recebeu uma negativa que evidencia o desamparo a que muitos estão sujeitos: “Aqui nós não temos esse tipo de gente”. A frase deixava clara a proporção do conservadorismo e do desafio que Telma enfrentaria — o que não era, de forma alguma, uma novidade em sua atuação nesta luta.

A “gente” a quem a afirmação da funcionária pública nega o direito à existência são as pessoas transgênero, alvos desse tipo de discurso violento que legitima toda sorte de agressões sofridas pela comunidade.

Pesquisa feita pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp) indica que ao menos 1,9% da população brasileira, cerca de 4 milhões de pessoas, são transgênero ou se identificam como não-binárias — ou seja, não se percebem como masculinas ou femininas. Ambas as classificações são parte do universo mais amplo da população LGBTQIAP+, que a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizou, em 2009, como sendo 2,9 milhões de brasileiros. O levantamento não incluiu os transgêneros, o que dá o tom da invisibilidade a que essa parcela da sociedade é submetida. Mas essa nem é a faceta mais cruel da realidade.

Quem não segue o padrão heteronormativo vive como se tivesse um alvo pintado nas costas. A discriminação, que começa com o discurso violento, muitas vezes lançado do púlpito virtual de fundamentalistas midiáticos, causa a morte de pessoas que possuem orientações sexuais diferentes das socialmente aceitas. De acordo com um dossiê do Observatório de Mortes e Violências contra LBGTI+ no Brasil, divulgado em maio deste ano, foram registradas 273 mortes nesse grupo de forma violenta no país em 2022. Desse total, 228 foram assassinatos, correspondendo a 83,52% dos casos; 30, suicídios (10,99%); e 15 mortes por outras causas (5,49%). 

A violência é especialmente direcionada a trans e travestis: há 14 anos consecutivos, o Brasil ocupa a estarrecedora posição de país que mais mata transgêneros no mundo. Relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), publicado em janeiro, aponta que foram registrados 131 assassinatos em 2022.

Embora não haja estudos que confirmem com precisão o dado, estima-se que a expectativa de vida de transexuais no país seja de apenas 35 anos — menos da metade dos 77 anos de expectativa de vida ao nascer do brasileiro em 2021, segundo informações da Tábua de Mortalidade do IBGE, divulgadas em novembro passado. 

Telma começou a se preocupar com esses números (e a lutar contra eles) em 2000. Naquele ano, ela iniciou um difícil caminho de autodesconstrução ao saber que o segundo filho se descobrira homossexual. Paulista de Presidente Prudente, mas criada na Mooca, em São Paulo, nascida de pai libanês e mãe espanhola, caçula de três irmãos, seu histórico era de adversidades. Técnico e olheiro de futebol cujo prestígio foi arruinado pelo uso de entorpecentes, Farid agredia a esposa e chantageava os filhos quando denunciado à polícia. Leontina vivia em fuga. Bachir era tio e pai ao mesmo tempo, um porto seguro em meio às tempestades. Roberto, irmão mais velho, um apoio sob cuja sombra Telma se abrigava. Como moldura, as festas e reuniões da comunidade libanesa. Até que Leontina tomou coragem, largou do marido e foi para Goiás. Os filhos ficaram, pois Farid cumpria pena e a família, que lutava por sua soltura, entendia que as crianças deveriam apoiá-lo. Quase um ano depois, a mãe voltou para buscá-los. Instados pelo juiz a escolher, decidiram ir com ela rumo a Goiânia. “Minha mãe foi uma verdadeira leoa. No meio de tudo isso, conseguiu dar pra gente um relativo apoio emocional. Defendeu a gente com unhas e dentes”. 

Na capital goiana, Telma viveu uma adolescência com menos sobressaltos. Na vizinhança, a família encontrou relacionamentos amorosos e entrelaçamentos musicais. Roberto desposou de Telma, uma xará, e começou parceria com Elifas, que casou com Rosa, a irmã do meio dos Issa. Bete, irmã de Elifas, tornou-se a melhor amiga. João, estudante de agronomia, chegou um tempo depois e passou a tocar percussão no grupo que essa turma toda formou. Os dois se enamoraram. E tudo terminou em samba: as rodas promovidas pelo “balaio de gatos” animavam a região.

Telma e João casaram-se jovens. Ele com 23; ela aos dezenove. Botaram o batuque de lado para iniciar uma representação de peças para a indústria e garantir a renda, já que a família não tardou a aumentar. A primeira filha, Sara, chegou um ano depois do matrimônio. Mais cinco anos e nasceu um menino — que já na infância demonstrou enfado pelas coisas de garoto. Não participava da educação física, não gostava de futebol. Isso, obviamente, custou-lhe um preço, que era cobrado no pátio escolar. Por outro lado, revelava-se sensível, criativo, e os pais procuravam estimular esses dons. Puseram-lhe em aulas de desenho e teatro. Quando, aos treze anos, ele revelou a verdade, a mãe pensou que o tiro saíra pela culatra.

“Eu achava [que o pessoal do teatro] estava influenciando”. Era tão somente seu preconceito, que julgava não existir, falando. Ela o abraçou, jurou apoio e compreensão, mas acalentava a ilusão de poder mudar a situação. Afinal, alimentara tantas expectativas! O rapaz intuiu o conflito no coração de mãe e reagiu com generosidade e paciência. Porém, não retrocedeu: “Não exigiu de mim uma compreensão que eu não tinha na época, mas foi muito firme”, admite. E, aos poucos, antigas convicções ruíram. Seguiram-se noites inteiras de conversa em que Telma perguntava sobre tudo. E, aos poucos, ela percebeu que nada de essencial havia mudado. Seu filho continuava ali, em sua inteireza. Apenas com um brilho diferente no olhar — que também revelava um sofrimento que ela ignorava. Entendeu, por fim, que o sentido da mudança deveria ser inverso: “Sempre fui mãe de um menino e vou ter que aprender a ser mãe de um gay”, concluiu.

E João? Como reagiria? O menino teve medo: “Não quero que o meu pai saiba”. O receio não era injustificado: em mais de uma ocasião, o músico deixou claro o que pensava de “viados”. Ao saber (ou obter a confirmação, pois não ignorava o que ocorria debaixo de seu teto), agiu como pai. Afiançou seu suporte e decretou que, na família, o respeito seria incondicional.

Se dentro de casa a situação estava pacificada, na rua a coisa era diferente. Violências cotidianas ocorriam e o rapaz, agora assumido, não suportava mais. “[Goiânia] é uma cidade muito preconceituosa, muito homofóbica”, considera Telma. E ela, acostumada a se deslocar conforme a direção do vento, decidiu que era hora de partir. Sara e Roberto ditaram o norte. A filha mais velha, formada em engenharia da computação, morava em Itajaí; Beto, e sua Telma, após viver um tempo em Brusque, desembarcaram em Porto Belo, onde estabeleceram primeiro um animado bistrô e depois um restaurante. O segundo ganhou notoriedade faz alguns anos, ao instituir um sistema de self service and self payment que chamou a atenção da mídia regional. Rosa e Elifas também frequentavam a cidade. Estavam aqui, durante a pandemia. O parceiro musical de Beto contraiu covid e não resistiu. Está sepultado no cemitério municipal da cidade: “Foi um grande baque pra gente”.

A primeira parada dos Freitas foi Balneário Camboriú. Cinco anos mais tarde, fixaram residência em Porto Belo. Nesse período, Telma aproximou-se de um grupo de apoio a mães de LGBTs. O Mães pela Diversidade é um movimento que se define como “coletivo independente, laico e suprapartidário”. Ele nasceu de uma união de mulheres com o objetivo de defender os direitos civis de seus filhos. Mais do que isso, o grupo se tornou um espaço de acolhimento para as famílias que têm filhos com orientações sexuais diversas e precisam enfrentar o preconceito e a discriminação diários a que estão sujeitas.

Hoje, Telma tem atuação bastante significativa na sucursal catarinense do coletivo e os últimos dois meses foram de bastante trabalho. Isso porque em 17 de maio é celebrado o Dia Internacional Contra a LGBTfobia e junho é o Mês do Orgulho LGBTIQIA+. Esta época do ano, portanto, é marcada por extensa programação no Mães pela Diversidade, com envolvimento direto, por exemplo, nas paradas realizadas Brasil afora.

Mas as atribuições não se resumem a esse período e, muito menos, às celebrações. Como entidade representativa de uma parcela marginalizada da população, boa parte da atuação do coletivo envolve a articulação com entes de diferentes esferas do poder público, lutas judiciais e atividades de formação que buscam conscientizar órgãos governamentais dos direitos dessas pessoas. Recentemente, Telma pôde comemorar a inclusão da sigla em uma cartilha da mesma Secretaria de Assistência Social de Porto Belo que a recebeu de maneira tão hostil anos atrás. “É um trabalho bem lento, mas a gente tem conquistado. É uma conquista aqui, outra ali. E assim vamos indo”. 

Mas as dificuldades que esse caminho pedregoso oferece não vêm apenas de fora, como Telma já precisou experimentar mais de uma vez. Quando considerava que havia se livrado de todos os preconceitos, incrustados, ainda que inconscientemente, na nossa maneira de encarar o mundo; que tinha desconstruído totalmente a forma de pensar e estava completamente envolvida na defesa da causa, ombreada com o filho, precisou se provar novamente. Quatro anos atrás, numa mensagem de WhatsApp, ele escreveu: “Lembra que a gente sempre conversou sobre a questão de ser trans? Eu gostaria que você começasse a pensar no assunto”. 

Em 2020 a sociedade experimentava profundas mudanças. Após anos de conquistas, como o reconhecimento da união homoafetiva e a criminalização da homofobia, tivemos um refluxo, com uma agenda conservadora ganhando tração. O chamado “Partido Digital” entrou em cena, lideranças políticas e religiosas de extrema direita passaram a atacar avanços, espalhar mentiras e, “cereja do bolo”, Jair ascendeu ao poder. 

Telma, que olhava o futuro com otimismo, desiludiu-se. Não bastasse isso, flagrou cacos de preconceito encravados no discurso, pois ainda recomendava ao filho “se comportar” para evitar riscos. O reconhecimento desse equívoco a atormenta até hoje. Mas, na ocasião, sua reação foi a de sempre: partiu para a luta. Foi ao Facebook e publicou: “Meu filho é gay e tenho muito orgulho disso!”. Era como se estivesse chamando o mundo para o pau. Mas ele não veio. Disso, Telma tira uma lição importante: a marginalização ocorre quando os pais abrem mão de seus filhos. Quando os expulsam de casa, jovens ainda, para viver nos becos, sujeitos a toda sorte de violência. É esse tipo de crueldade que o Mães pela Diversidade se dispõe a combater.

Mas é hora de apresentarmos Salomé.

Ela tinha 32 anos na época e vivia em São Paulo. E, como fez quando saiu do armário aos treze, não estava disposta a recuar. Submeteu-se ao complexo processo de transição enquanto a mãe passava pelo seu, de luto. Foram quinze dias de profundo pesar. Enquanto nascia Salomé, Telma se perguntava se conseguiria assimilar a mudança. Na militância, já havia atendido diversas famílias com filhos transsexuais e conhecia a dimensão da violência que sofrem. 

Naquelas longas conversas com a filha estava a resposta: “Aí eu fui descobrir o quanto estava sendo egoísta, porque eu fui descobrir os sentimentos e todos os sofrimentos da minha filha. Eu vi que aquela minha expectativa era muito pouco perto do sofrimento e das cicatrizes na alma dela, de não ser quem ela era. E não importavam os meus sentimentos, nem a expectativa que eu tinha em cima da vida do meu filho. O que importava era a vida dela, o que ela era, e eu tinha que ajudar ela a ser quem ela era, e aceitar ela daquele jeito”. João, novamente, não titubeou: “Estou com ela e não abro”. 

“Salomé” tem origem aramaica e significa “a paz do Sion”. A forma como é utilizado atualmente vem do grego, mas é também associado ao hebraico shalon, “paz”. Era justamente isso o que Salomé buscava quando decidiu fazer a transição de gênero, daí ter escolhido o nome. 

Formada em Design de Moda pela Universidade Federal de Goiás (UFG), ela segue em São Paulo, trabalhando com desenho e confecção de figurinos e roupas sob medida. Sobrevive além das expectativas, vive da profissão que ama e exerce a criatividade tão incentivada pelos pais. A trajetória de vida e a carreira que vem construindo, de acordo com Telma, são resultado de muito esforço próprio e de uma indispensável dose de apoio da família. Assim, escapa à marginalização que pessoas trans enfrentam no dia a dia. Ainda assim, não tem sido fácil. Por exemplo, abriu mão de uma carreira acadêmica em razão da discriminação.

Embora perceba alguns avanços em relação ao tratamento dado à comunidade LGBTQIAP+ em Porto Belo, Telma acredita que não seria simples para Salomé viver aqui. “Agora, quando a minha filha vem, já é mais tranquilo, mas das primeiras vezes eu achei bem agressivo. Porque são olhares, né? Claro que ninguém nunca fez nada, mas aquela coisa assim de olhar, né?”, explica

Neste contexto, portanto, o ativismo dessa senhora tem potencial para contribuir com a diminuição da discriminação de cunho sexual na cidade. Modesta — mas convicta —, ela concorda e relata já ter vivenciado momentos emocionantes em que pais que renegavam filhos LGBT+ passaram a aceitá-los depois de uma conversa “ao pé do ouvido”. 

A despeito do conservadorismo que observa na região, Telma se sente em casa em Porto Belo. Ela e o marido começaram a frequentar a cidade quando vinham de Balneário Camboriú para reforçar o time das rodas de samba lideradas pelo irmão, Beto, em seu Armazém Bistrô. Pegando carona na popularidade do músico, que já tocou profissionalmente e gravou LP, Telma e o marido foram tranquilamente assimilados. Ela passou a auxiliar o irmão no restaurante, instalado em um dos casarões do chamado centro histórico da cidade. A escola de samba capitaneada por Carlão esquentava tamborins num desses carnavais e João achegou-se com seu cavaquinho. Reforço bem-recebido e logo ele e a esposa ganharam espaço na roda do sambão. Sara volta e meia abala-se de Itajaí para participar. No sábado ensolarado em que recebeu a reportagem para esta entrevista, justamente na semana posterior ao da Parada do Orgulho, estava trajada com esmero — não exatamente para a câmera, mas porque teria apresentação no Botequim Porto 27, de frente ao trapiche municipal dali a um par de horas. E quem somos nós para atrasar o batuque? Aceleramos o play e, ainda assim, ouvimos muito. Foi uma conversa intensa, necessária e esperançosa. Porque, como disse dona Telma, a palavra final sempre tem que ser essa: esperança. 

(*) Entrevista concedida em 17 de junho de 2023.

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