Difícil encontrar sujeito cujo apelido tenha menos a ver consigo do que o André. André, o “Coveiro”. André, o músico, uma cria de Porto Belo que é quase a personificação desta cidade. No falar cantado (do “côsa linda, rapázi”) e na afabilidade do cara do bem, que não condiz absolutamente com a associação meio funesta que a alcunha sugere. Mas isso tem explicação no futebol. Nos tempos de garoto, André cumpria com zelo a função de zagueiro, rapaz robusto que era para os padrões da molecada. Zelo demasiado: “Achava que não devia sair de perto do goleiro. Tinha que defender, né?”. Num amistoso, seu time vencia fácil, 3×0, quando o adversário encontrou naquele beque que não saía da área o mapa da mina. Resultado: empate, três gols em cima do zagueirão que enterrou o time. Daí o “Coveiro”. Durante um tempo, André até incorporou o apelido ao nome de músico. Virou “André Coveiro” nos tempos de Uniclãs, a banda que foi fenômeno na região. Mas resolveu superar essa fase, abandonar o apelido, que ele entende como um afago de quem o conhece. É agora André de Miranda. Ainda músico, ainda atleta e um modelo – embora este último papel não seja intencional.

Para entender um pouco melhor esta história – e as diferentes facetas desse personagem – é preciso ir por partes. Primeiro, a música: sua trajetória nesse campo foi desenhada muito antes que André, agora com 34 anos, nascesse. João “Basta”, bisavô materno e acordeonista, animou os primeiros bailes da península e deu as notas iniciais da tradição musical da família. A mãe de André, Darlete, seguiu o coro e, junto com o marido, Geraldo, tornou-se cantadora de Reis. André não lembra, obviamente, mas sua mãe conta que, com apenas um mês de vida, ele já frequentava os “ternos” no Canto Grande, confortavelmente aninhado no colo materno. Com uns nove anos de idade, vivia a desafinar a viola do pai, tamanho o fascínio que o instrumento exercia. Geraldo, então, chamou-o de canto e ensinou os primeiros acordes. Daí para diante, ele não largou mais do violão. Nem o violão dele. “Foi um caminho sem volta”.


“A gente desbravou muita coisa”


Uma única vez a relação estremeceu. Foi aos dezoito anos, quando o rapaz andava com ideias de servir à Aeronáutica. Nesse tempo, André conciliava trabalhos variados, típicos de adolescente, com os “toques” na noite. Depois de tirar muita música de ouvido, gravar muita fita K-7 com composições que jamais gostou, tocar no grupo de jovens da igreja, animar rodas de violão na Praça da Bandeira e participar de uma banda de Bombinhas (Tribunal), Coveiro se juntou a Cezinha, Jefinho e Andinho e formaram seu primeiro grupo, o Cordas de Varal. Focada no rock nacional dos anos 1980, a banda durou pouco mais de um ano, quando, com uma pequena mudança na formação (saiu Andinho, entrou Alex), passou a se apresentar sob o nome Tormenta, durando quatro anos e fazendo o circuito de casas noturnas da região. “A gente desbravou muita coisa”, considera o músico, lembrando a “peleia” que era fazer som naquele tempo, período entre 1994 e 1998, quando Porto Belo conheceu suas primeiras apresentações musicais de nível nacional, com a realização do Palco das Artes e, posteriormente, os shows na boate Café Pinhão. Nessa mesma época, André começou a exercitar sua capacidade de mediação, gerenciando “crises” e aprendendo com o convívio entre pessoas que, embora tivessem em comum a amizade e a música, manifestavam personalidades diversas.

As coisas estavam nesse pé quando surgiu o desejo de alistar-se. Porém, a oportunidade de gravar um trabalho com a banda Dr. Dilemma, de Bombinhas, o manteve no caminho da música. A experiência foi reveladora: “A gente viu que a água batia bem embaixo”, explica, referindo-se à dificuldade que era gravar em estúdio. André contribuiu com algumas composições, mas o nível de exigência com relação ao próprio trabalho continuava o mesmo: “Não gostei”.

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Ainda que não tivesse gostado, ele percebeu que a música autoral era o seu grande propósito artístico. Com isso em mente, partiu para nova empreitada: a banda Al Jihad, que tocou durante dois verões e foi assídua no Luau do Dô (depois Luau do Guga), efervescente ponto de encontro da molecada em Bombinhas. Lá, o grupo, já identificado com o público, começou a cantar algumas composições próprias, além daquilo que Coveiro chama de “lado B, coisas que não tocavam na rádio”. Ele também passou a incorporar ao próprio estilo influências da música regional nordestina e do reggae. E a Al Jihad apresentou aos jovens da cidade um personagem novo: Fernando Kruscinscki tinha talento para compor, uma voz grave, marcante, e surgiu como um catalisador ao propor: “Vamos fazer um trabalho todo mundo junto?”. Atendendo ao chamado, reaparecem na história Alex e Cezinha, que haviam enveredado por outro caminho, tocando em outras bandas, juntando-se novamente a André e Jefinho, mais Carlinhos, percussionista que tocou na Dr. Dilemma, e o estreante Fernando. Dessa reunião de velhos amigos surge a Uniclãs.

O novo grupo foi um ápice de popularidade e profissionalismo na vida desse pessoal. Depois de seis meses de ensaio, com repertório próprio, a banda estreou mais ou menos na virada do século no Canoa Quebrada, bar famoso no centro de Porto Belo. Antes disso, Jefinho havia pulado fora, cedendo o lugar à bateria a Guto. Em seguida, gravaram uma demo tape que, na opinião do exigente Coveiro, “ficou redondinha”. Empresário paulista que vive em Porto Belo, Juracy de Almeida se interessou pelo som da Uniclãs e o grupo embarcou para São Paulo e gravou o primeiro CD, “Viagens no Exílio” (2003). Foi o auge. Depois, a banda entrou num ciclo de instabilidade, troca de integrantes (a gravação de “Animus”, de 2008, só contou com Coveiro e Nando da formação original), idas e vindas. Realizou o último show em 2014, em mais uma promessa de retorno que não se concretizou. As composições permanecem na ponta da língua dos saudosos, o fã clube suspira por uma nova reunião, mas parece improvável.

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André não lamenta. Para ele, a Uniclãs foi um “presente. Uma prova de que, quando a gente quer uma coisa de verdade, ela acontece”. Cumpriu seu papel, avalia, ao deixar um caminho aberto, um desejo nos músicos envolvidos de se especializar, seguir tocando e compondo. Com esse objetivo em mente, o portobelense frequentou o Conservatório de Música de Itajaí, concluído no ano passado, e está fazendo uma faculdade na área. Antes, em 2009, tornou-se professor em escolas da região, depois de dar algumas aulas particulares. Em 2013, foi convidado a atuar na Fundação Cultural de Porto Belo, num projeto de recuperação da cultura popular destinado às crianças. Está envolvido nele desde então. O carro-chefe da iniciativa é a encenação do boi de mamão.

Não demorou, e a tradição impregnou seu trabalho autoral: André convocou os velhos parceiros de Uniclãs Cezinha e Carlinhos, chamou outros músicos, e criou o Sarau Afro-açoriano, um projeto de música folclórica que vem obtendo destaque na região. Neste ano, o grupo conquistou um concurso de bandas em Itajaí e foi finalista de outro, em Balneário Camboriú. As canções, que apelam ao ideal da vida simples, à valorização do passado e preservação da natureza, ganharão registro em CD em breve.


“O cenário da música catarinense está crescendo”


O projeto parece um retorno às raízes do artista. André, entretanto, afirma nunca ter se distanciado dessa herança musical. Tanto que já era comum, ao final das suas apresentações no Maria Chorona, no centro da cidade, o pessoal pedir-lhe para “cantar um boi”. Tornou-se sua marca registrada – um “toca Raul” particular. Como começou isso? Ele não sabe, mas é possível que tenha a ver com um episódio que virou folclore: em 2000, durante uma apresentação do músico Zeca Baleiro no Café Pinhão, o maranhense perguntou se alguém da plateia sabia tirar versos de boi de mamão, sobre o qual ele tinha ouvido falar. André estava presente e não titubeou: subiu ao palco e improvisou uns versos, para delírio geral.

Em paralelo ao Sarau, também com a participação de Cezinha e Carlinhos, o artista lançou o Música Orgânica, trabalho igualmente autoral focado em world music que o trio apresenta em bares da região. Finalmente em paz com suas composições, André aposta na fusão de ritmos e na “pegada da letra, com músicas que digam alguma coisa para as pessoas” – principalmente, sobre preservação ambiental, tema que ele julga “atual e importantíssimo”. Com uma verba obtida mediante lei municipal de incentivo à cultura, o grupo logo entrará no estúdio para gravar.

André vê suas canções inseridas num momento especial da música autoral catarinense, com uma grande movimentação de artistas e bons trabalhos na praça. Mesmo seu projeto folclórico não está isolado: iniciativas igualmente importantes têm florescido em municípios vizinhos – exemplos disso são os Cantadores de Engenho de Bombinhas e o Tarrafa Elétrica de Itajaí. “Acho que o cenário da música catarinense está crescendo”, observa, satisfeito por Porto Belo ocupar uma posição destacada nessa retomada, com a criação de eventos como o festival de música Polifonia do Sal e a generosa oferta de palcos nos bares para os autores interessados em mostrar suas próprias composições. Tudo isso, em sua concepção, está redefinindo a música barriga-verde: “A gente mostrou que não tem que ir para São Paulo [para mostrar o trabalho]. A gente sobrevive [de música] aqui”.


“Se fico alguns dias sem correr passo mal”


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Varar noites tocando, entretanto, não é a atividade mais regrada que existe. É comum que os artistas cedam a certos hábitos. Coveiro cedeu ao cigarro. Fumou durante doze anos, até decidir que isso não fazia mais sentido. Não é uma história da qual ele goste, mas o fato é que André começou a correr para se livrar do vício.

Como a música, o esporte sempre foi um companheiro seu. Além do futebol, Coveiro gosta de nadar. A carreira como zagueiro, porém, terminou em meados de 1990, durante um campeonato de beach soccer na praia do Baixio, quando lesionou seriamente o joelho direito. Ele até tentou continuar, mas perdeu a confiança e deixou a bola para lá. Assim, quando Carlinhos, dono da lanchonete Bodega do Porto e entusiasta das corridas de rua e da natação, o convidou a acompanhá-lo em seus treinos, André descobriu um insuspeitado gosto pela corrida – e um aliado poderoso em sua mudança de vida.

Hoje, seis anos após parar de fumar, o agora músico-atleta já participou de sete maratonas e três ultramaratonas. No último sábado (7/11), completou os 100 quilômetros do 2º Indomit Costa Esmeralda, competição de ultra trail da qual ele se tornou uma espécie de embaixador local. Já gravou uma música para a franquia – que realiza uma maratona em Bombinhas há sete anos (Indomit K42) e se espraiou para outras cidades, como Campos do Jordão (SP) – e tem incentivado muita gente em Porto Belo a seguir seus passos. Mais de uma dúzia de moradores da cidade participaram, no sábado, de alguma das provas do Indomit graças a ele. “O que te move a andar? O que te inspira a viver? O que te deixa feliz? O que te faz correr?”, questiona a música que compôs (“Indomável”), incorporada ao repertório do Música Orgânica.

“Se fico alguns dias sem correr eu passo mal, fico chato”, admite, embora reconheça que, em vista das atribulações da rotina de professor, músico e pai de família (é casado há nove anos com Francilaine Duffeck, com quem tem duas meninas: Sarah, de cinco anos, e Laura, de um. Fran, por sinal, também é corredora), fique difícil arranjar tempo para treinar. Mesmo assim, é comum vê-lo cruzando a trote as ruas ou trilhas da cidade, bandana na cabeça e mochila às costas.

Assim como tudo o que diz respeito à sua vida, André encara as corridas como uma forma de se conhecer. “É como uma extensão da alma, você busca transcender”, argumenta. O ritmo dos treinos nos morros da Mata Atlântica, cuja preservação ele assume como compromisso (político, inclusive), segue no mesmo diapasão da sua música, as sensações vividas no suor do esforço físico se assemelham àquelas despertadas pelo som. Durante as provas existe o tempo a ser batido, o desafio de chegar, mas o músico não está ali para competir. Ele pactua da ideia formulada pelo filósofo oriental Osho, de que a meditação moderna deve ser dinâmica, não estática, e atribui ao esporte um sentido espiritual, de introspecção. Um momento de contemplação.


INSPIRAÇÃO

O sol começa a baixar quando André, pela terceira vez, oferece um café (substituído na última hora por algumas latas de cerveja). Seguimos conversando, embora a entrevista tenha, em tese, terminado. Aproveitamos o fim da tarde ensolarada de sábado na varanda que o músico construiu, junto com o parceiro Nando Kruscinscki – que, além de cantar, demonstra bom trato com a madeira. Sua morada rústica e agradável fica ao pé do Morro da Estação, rodeada pela Mata Atlântica que ele tanto se esforça em cuidar. Não fosse o som dos carros que passam na avenida principal, a sensação seria de estarmos em um sítio – com o detalhe de que se tem uma visão privilegiada do mar e de parte da Ilha João da Cunha. Há árvores de sobra, pássaros que cantam a todo momento, um gato dorme aos pés do seu dono e uma aracuã mais arrojada chega perto, parecendo concordar com alguma coisa que ele diz. O lugar realmente inspira André, ex-Coveiro, a esticar a conversa e a se dedicar a uma vida mansa. E ele se define como sujeito caseiro: “Canceriano, né?”.

Caseiro, tudo bem. Acomodado, nem de longe. “Ultimamente o tempo tá corrido mesmo, mas eu dou conta”, garante. Além dos projetos musicais, do trabalho como professor e agitador cultural, dos toques na noite e das maratonas, André achou espaço na agenda para se engajar politicamente. Preside uma associação de músicos e projeta instituir outra, de corredores. Além disso, ajudou a fundar em Porto Belo o Partido Verde (PV), o qual também preside. Alguns o veem como líder natural e um exemplo de determinação a ser seguido. Perguntamos sobre como se sente sendo espelho, influência e inspiração para outras pessoas. Ele, no entanto, prefere não assumir esse papel: “Faço porque gosto. Só para as crianças que eu penso em passar algum exemplo”, responde, pouco à vontade.

Mesmo preocupado com questões importantes (a condução da cultura na cidade, o meio ambiente, a educação dos jovens etc.), André jamais deixa de lado o bom astral, o otimismo e a simplicidade que lhes são peculiares. Com tantos adjetivos positivos depondo a seu favor, ficamos curiosos em saber como ele vê a si próprio: “Como um buscador”. O alvo dessa busca, esclarece, é um “eu” íntimo, aquele conhecimento que, no final, talvez explique tudo. Talvez não, mas uma certeza André de Miranda já tem: “Somos muito mais do que parecemos”.

(*) Entrevista concedida em 12 de setembro de 2015.

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