“Eu nasci no chão daquele galpão ali”, aponta Aldo Leonardo Rocha, indicando o velho barracão poucos metros acima, na perpendicular de sua cozinha. No referido local há um estábulo com várias baias, onde uma galinha cisca acompanhada pelos seus pintinhos e um pequeno bezerro aproveita a sombra para descansar, e também uma despensa que guarda toda sorte de ferramentas — das mais modernas a utensílios centenários, fabricados pelo avô do proprietário.

Aos 75 anos de idade, seu Aldo é um homem de olhar franco que, embora aposentado, mantém a disposição para o trabalho. Toda manhã ele cruza a avenida José Neoli Cruz para cortar forragem para o gado. “Quem tem um sitiozinho como eu tenho, o serviço nunca para”, justifica.

Criado sob um rigoroso código moral, herança de seu pai — que não cumprimentava uma criança sequer sem remover o chapéu da cabeça — Aldo tem uma conversa fluida e clara, cujas frases são pontuadas por um recorrente “parceiro”. É conhecido em toda a península devido o trabalho que desenvolveu como vacinador, percorrendo longas distâncias de bicicleta (e depois de moto) para imunizar o gado da região. Se há doze anos Santa Catarina detém o status de zona livre de febre aftosa, é graças a indivíduos como ele.

CARPINTARIA E ARRASTA-PÉ
Aldo nasceu dia 27 de março de 1944. É o caçula dos quatro filhos de Maria Silvina e Leonardo Paulo Rocha. Sua morada, portanto, está no mesmo terreno que o viu nascer e crescer, às margens antiga Estrada Geral do Alto Perequê, considerado parte do roteiro cultural de Porto Belo. O entorno, porém, mudou consideravelmente.

Com o término da pavimentação asfáltica da via que liga a cidade ao município de Tijucas, em 2019, a avenida tem sido mais utilizada pelos motoristas que desejam escapar do tráfego intenso e do pedágio da BR-101. Quando seu Aldo era criança, apenas raramente passava por ali o Rápido Sul Brasileiro, um ônibus vermelho que cortava a estrada de terra e fazia com que o lugar fosse tomado pela poeira.

Momentos antes de se acomodar em frente à câmera para conceder a entrevista — sob o olhar atento e afetuoso da esposa Célia Maria, 70 anos — Aldo estava do outro lado da estrada, bem em frente à sua casa, cuidando de seu gado. Seus avós paternos viveram naquela área e até hoje ela pertence à família, embora venha recebendo constantes ofertas de compra por parte de construtoras, sinal da expansão imobiliária que Porto Belo vive atualmente.

Décadas atrás, a cidade nem imaginava o boom de prédios que se observa hoje em dia, sobretudo no bairro Perequê, bem próximo dali. A maioria das casas de então era construída com a habilidade de carpinteiros como seu Leonardo, cuja principal especialidade era a confecção e conserto de pesadas peças de engenho de farinha e açúcar.

Essa habilidade foi-lhe passada por Davi de Souza, tio de Aldo, embora Paulo Antônio, pai de Leonardo, também lidasse com carpintaria. Dono das terras do outro lado da José Neoli Cruz, Paulo ainda era proprietário de um rancho de pesca na praia do Perequê, no local onde está o empreendimento que, até recentemente, era conhecido por Hotel Blumenauense.

A construção das casas representava ofício para uns e divertimento para outros, numa época em que as opções de entretenimento eram poucas. Quando uma construção era finalizada, o proprietário promovia um baile para que o arrasta-pé ajudasse a aplainar o assoalho, feito de tábuas brutas.

LIÇÕES DURAS NA ESCOLA
Nem a pesca nem a carpintaria, entretanto, correspondiam à principal atividade dos Rocha. Eles eram, em essência, lavradores e plantadores de café. Tudo o mais pode ser entendido como acessório. E, como era tradicional, Aldo seguiu o caminho da roça tão logo pôde com a foice e a enxada (feitas sob medida para suas pequenas mãos). Para um garoto acostumado a correr pelos matos, essa prematura inserção no mundo adulto não inspirava pesar, pois não sacrificava as horas de lazer.

O principal passatempo era jogar bola com a turma na poeirenta estrada geral. Algo impensável no asfalto de agora, naquele tempo a bola corria solta e só de quando em quando um caminhão ou ônibus interrompia as jogadas.

Ademais, muito melhor os calos nas mãos da lavoura que os vergões nas costas resultantes das jornadas estudantis de Aldinho. Na Escola Isolada do Alto Perequê — atual Escola Pedro Alemão Antônio Richartz — os filhos de Leonardo aprenderam as primeiras (e não muitas mais) letras. As quase 40 crianças que formavam o corpo discente de sua época viviam sob os cuidados severos de professoras como Catarina Benedita Guerreiro, Laura de Souza e do inspetor Élio Peixoto, que vinha de Florianópolis em uma “moto doidona” para flagrar os desleixados. “Havia respeito”, frisa seu Aldo, separando as sílabas da última palavra para destacar seu ponto de vista. “E medo”, acrescenta.

Como não fosse o aluno mais aplicado da escola, Aldinho vivia na mira da dona Laura, cuja temida “Tia Chica”, uma longa régua de madeira, roncava ao menor deslize. Uma ocasião, o rapaz foi designado para buscar água na cachoeira que corria atrás do engenho de Pedro Alemão. De pura molecagem, quebrou a tampa de barro da purunga que havia levado. Quando admitiu a culpa, foi posto a encarar a parede por meia hora, ajoelhado sobre grãos de milho. Seus colegas não perdoaram e, no intervalo, houve briga. Mais tarde, quando contou ao pai o ocorrido, não obteve simpatia: seu Leonardo retirou a bainha do facão da cintura e acrescentou juros ao castigo.

A criação rigorosa não significava alienação em relação aos filhos. Havia carinho, e ele se manifestava principalmente nas datas comemorativas de fim de ano. Entre as décadas de 1940 e 1950, uma boa colheita significava um Natal alentado, com comida farta na mesa (carne inclusive), presentes em ninhos feitos com barba-de-velho, uma gasosa de limão na mesa e até uma cervejinha, que se amarrava pelo gargalo e punha a gelar no fundo do poço. E se aguardava o Terno de Reis, que arrastava toda a gente. E o boi de mamão, que seu Januário sabia chamar como ninguém. “Era muito alegre o Natal naquela época. Mas tudo na simplicidade”.

CÉLIA VAI AO SERENO
Diferente do grosso de seus conterrâneos, Aldinho não saiu para ver o mar. Mas foi por pouco: seu irmão Zeni estava ganhando bem na pesca, enquanto que ele, na roça, não via dinheiro. Por isso, achou por bem tirar os documentos e seguir para Santos. Dona Maria, porém, suplicou que não fosse: era o único rebento que ainda vivia na casa dos pais. Aldo mudou de planos, e a decisão precipitou uma série de eventos — a começar pelo casamento.

Aos 23 anos de idade, o filho do sóbrio Leonardo Rocha empenhava-se em colecionar namoradas. Certo dia, aquela que ele mantinha no Sertão do Trombudo (atual localidade de Itapema) soube da outra que morava no Sertão de Santa Luzia e recomendou ao Casanova direcionar a bicicleta para outra freguesia. Pois foi exatamente o que Aldinho fez: de passagem pela Meia Praia, encostou na venda de Adelino, pediu um refresco e esticou os olhos para cima da sobrinha deste, Célia Maria, na época aos dezoito anos. No domingo seguinte, o rapaz aprumou-se para o baile que a igreja do bairro promoveu e ali interpelou a moça. Um ano de namoro depois, Aldo convidou Célia “ao sereno” e trouxe-a consigo para as terras de seu pai no Alto Perequê.

O novo estado civil — ainda que não formalizado por benção de padre nem papel de cartório — não melhorou, de imediato, a situação econômica de Aldo. Na verdade, ele sequer podia comprar a bezerra que almejava (280 cruzeiros) para auxiliar na alimentação da primeira filha, Vera Lúcia, que já estava a caminho. Entrou, então, em sociedade com Zeni, que arranjou-lhe o dinheiro com o intuito de partilharem as crias. Mais tarde, o sogro Ernesto Serafim da Silva repassou a Célia um dote, e as coisas começaram a engrenar. Aldo instalou um banheiro dentro de casa dos pais e adquiriu um refrigerador. Um tempo antes, quando os postes que conduziam a energia elétrica começaram a avançar pela Estrada Geral do Alto Perequê, ele adquiriu dois motores para tocar os engenhos (um colega obteve-lhe o financiamento, já que ainda não possuía crédito). “Comecei a sair daquele esquema dos mais antigos”.

Por volta de 1960, um surto de raiva bovina causou estrago na região. Em sete dias, seu Leonardo perdeu dez animais. Foi o que bastou para ele desistir do gado. Uma década depois, seu caçula retomaria a criação. Com uma vantagem: Aldinho aprendeu a imunizar seu pequeno rebanho.

O VACINADOR DA PREFEITURA
O conhecimento veio de um gaúcho que se instalou em Tijucas. Ildefonso Dullius era criador de cães, mas sabia como vacinar gado. No mesmo período, o Estado designou um veterinário para combater a doença transmitida pelo morcego na região. Ele travou conhecimento com Aldo e pediu para auxiliá-lo. Além da raiva bovina, desde 1965 Santa Catarina promovia campanhas contra a febre aftosa, infecção que compromete a capacidade de produção dos rebanhos e cujo último foco foi detectado em 1993, valendo ao Estado a certificação de área livre de febre aftosa da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) em 2007. O último ano de vacinação ocorreu em 2000.

A vacina contra a aftosa era aplicada três vezes ao ano. Para dar conta da tarefa, Aldo percorria toda a extensão do território portobelense, desde os seus bairros do interior até as praias do que hoje é Bombinhas. No total, mais de 5 mil cabeças de gado. O detalhe é que nesse período todo o deslocamento era feito na base do pedal, os instrumentos de trabalho amarrados ao bagageiro. Diante da seriedade da função, não havia como esmorecer: “Ganhei muita cabeçada, ganhei muito coice. Porque não podia deixar nem um animal para trás”. Além disso, ele não tinha folga: trabalhava de domingo a domingo.

Os riscos da profissão preocupavam-no, sobretudo porque o ordenado não era grande coisa. Foi o que explicou a “doutor” Antônio, o novo gestor das campanhas de vacinação da região, quando este comunicou que havia um novo tipo de vacina em uso que exigia o aprendizado de técnicas mais refinadas de aplicação. “Essa comissão que eu ganho é dinheiro fácil, ligeiro ele vai embora. Não se faz fundo com isso, eu quero uma coisa pra futuro”, argumentou, ajuntando que estava fora a menos que lhe conseguissem emprego na municipalidade. Era agosto de 1976 e o prefeito, Manoel Felipe da Silva Neto, era velho conhecido do vacinador — vivia cortando capim para as vacas no vargedo da família Rocha. Aldo e Antônio estiveram no gabinete de “Piti” e a conversa foi curta e grossa: Aldinho era o mais novo funcionário público de Porto Belo.

APOSENTADORIA
Com a carteira assinada, a vida melhorou — embora alguns problemas ocorressem. Por um lado, a família dispunha de assistência médica e o ordenado entrava todo mês. Além disso, o salário aumentava anualmente — durante algum tempo, pelo menos. Por outro, em razão de condutas equivocadas do Executivo, ele chegou a ficar seis meses sem receber, dependente da bondade alheia. Também comeu o pão que o diabo amassou durante certa administração, tudo porque resolveu se aventurar na política: submeteu seu nome ao cargo de vereador, mas não se elegeu; tampouco o candidato que apoiou. Essa experiência ele jamais desejou repetir.

Seu Aldo aposentou-se em 2012. Nesses 36 anos de trabalho, converteu-se em veterinário. Mesmo com pouco estudo (tem somente o 4º primário) aprendeu com outros profissionais e fez cursos em Florianópolis, Itajaí e Indaial, obtendo diplomas de agente de saúde animal e inseminador artificial. Fazia partos (“cheguei a fazer uma cesárea numa porca”), castrava, cuidava de cães, cabritos e cavalos. Salvou muito animal, mas também teve seus fracassos. O mais marcante foi quando ajudou no parto de uma vaca. Ele retirou a cria e realizou os procedimentos de praxe. O animal, porém, foi “entristecendo”. Ao cabo de uns dias, morreu. Ao abrirem-no, descobriram outro terneiro. Depois disso, nunca mais deixou de conferir a possibilidade de uma gestação gemelar (encontrou outras quatro em sua carreira).

“Eu atendia o povo como veterinário nenhum atendeu”, garante Aldo Rocha. Com o tempo, sua posição de prático foi suplantada por uma geração de veterinários graduados na faculdade. Ainda assim, volta e meia seus serviços são requisitados — o que, para ele, sempre é motivo de satisfação. “Eu trabalhei pelo gostar, pelo amor ao animal”.

Trabalho, aliás, é coisa que não falta na vida de seu Aldinho. Mesmo após uma série de recentes complicações de saúde (um AVC, um câncer e, coisa de meses atrás, um cálculo renal de 5 cm), ele mantém a rotina de sitiante, levantando ao nascer do sol para cuidar da criação e plantar milho, aipim e tudo o mais que suas terras produzem. Das quase 70 cabeças de gado que possuiu nos bons tempos sobraram uma vaca, um touro e três bezerros — além de um porco e um punhado de galinhas. É o que basta para tocar a vida. Os pais há muito se foram (dona Maria em 1973; seu Leonardo em 1990), os filhos se governam (são cinco: além de Vera Lúcia, de 51 anos, Terezinha Aparecida, 49, Carlos Henrique, 50, Aldo Filho, 38 e Luiz Fernando, 33) e a paisagem em torno se altera em ritmo acelerado. Como um homem que viveu o tempo antigo, ele não deixa de se admirar: “Só queria que o meu avô fosse vivo pra ver toda essa tecnologia”, suspira.

(*) Entrevista concedida em 29 de novembro de 2019.

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