As imagens que ilustram este artigo são, possivelmente, os registros fotográficos de Porto Belo mais antigos de que se tem notícia. Foram feitos pelo engenheiro e cartógrafo Carl Wilhelm Emil Odebrecht (1835-1912) e publicadas em 1899 no semanário ilustrado sobre ciências, indústria e viagens Prometheus, editado em Leipzig, na Alemanha.

Nascido em Jacobshagen — cidade do antigo Reino da Prússia que atualmente atende por Dobrzany (Polônia) — Emil Odebrecht chegou a Santa Catarina em 1856, com 21 anos de idade e um diploma concedido pela Universidade de Greifswald. Veio a pedido do doutor Hermann Blumenau, que seis anos antes fundara uma colônia alemã no Vale do Rio Itajaí e precisava dos serviços do rapaz para abrir picadas e mapear a região.

Emílio — como passou a se chamar após naturalizar-se brasileiro — fez mais do que isso. Pisou terras do Alto Vale ainda virgens da presença europeia, traçou caminhos até o planalto catarinense, instalou linhas telegráficas e lutou como voluntário na Guerra do Paraguai. Também deu início a uma descendência extensa que, 160 anos depois, teria uma de suas ramificações, radicada na Bahia, alçada à primeira página dos noticiários do Brasil e do mundo — para provável desgosto do austero patriarca, caso pudesse saber de antemão o que fariam alguns dos seus, avesso que era a malfeitos e politicagens.

O engenheiro mantinha, segundo relatos, relação cordial com os nativos da região, demonstrando, ao que parece, interesse pela cultura dos “bugres” (chamavam-no “Rondon do Sul” em alusão a Cândido Rondon, o famoso militar e sertanista brasileiro). Daí que tenha sido atraído pelas inscrições rupestres descobertas na Ilha João da Cunha. Ele esteve no local, fez ao menos duas fotografias e, posteriormente, comunicou o fato a A. Saeftel (não se pôde apurar o que o “A” significa), antropólogo alemão radicado ou em visita a Blumenau.

Registro de Odebrecht a partir da ilha, com Porto Belo ao fundo

 

Saeftel estudava os sambaquis e preparava um trabalho sobre o assunto para o Prometheus (publicado no número 521, de outubro de 1899). Antes, porém, escreveu um artigo para o semanário comentando a situação dos indígenas e divulgando as descobertas de Emil. Intitulado “Misteriosos petróglifos no Brasil”, saiu na edição de número 495, de abril de 1899.

O texto acabou sumindo em meio ao extenso arquivo da revista (foi editada entre 1890 e 1921), permanecendo desconhecido por aqui até recentemente, quando um trineto de Odebrecht, Marcos Schroeder, pesquisando a genealogia da família, encontrou-o. Como fazia alusão à João da Cunha, Marcos enviou uma cópia a Alexandre Stodieck, proprietário do empreendimento turístico Ilha de Porto Belo. Alexandre, por sua vez, pediu ao historiador local Dieter Kohl que traduzisse o artigo.

Nele, Saeftel mencionava a ressonância que o tema (tribos brasileiras) encontrava na Alemanha, após relatos das viagens ao Xingu realizadas por Hermann Meyer — autor de uma tese de doutorado sobre arcos e flechas do Brasil central — entre 1895 e 1899. Também demonstrava preocupação com a situação dos belicosos nativos do oeste catarinense, envolvidos em constantes escaramuças com os europeus.

“É uma luta amarga e desigual que ocorre entre os colonos e os índios, cada vez mais cercados e repelidos, sabendo que sua luta é de morte e sua tribo, daqui a alguns anos, vai pertencer ao passado”, antecipou o autor. “O governo brasileiro, infelizmente, não fez nenhuma tentativa de aculturar essa tribo e, para a ciência, ela foi perdida”, lamentou o pesquisador, sublinhando uma realidade que não mudou nada nos últimos tempos.

Reprodução do semanário com o artigo de A. Saeftel sobre a João da Cunha

 

“A partir do pouco que conhecemos, podemos ver o fato de essa tribo, os bugres — como em regra são chamados os índios no Brasil —, não possuir nenhum sinal de escrita ou de comunicação. As numerosas armas, adornos e objetos que foram tomadas dos bugres são geralmente lisas, os enfeites cada vez mais raros e mais simples. Assim, chama muito a atenção que na costa exista uma parede íngreme de rocha, na qual foram gravados muitos e desconhecidos desenhos, os quais, sem dúvida, foram feitos pelos bugres”.

Saeftel se referia ao sítio encontrado na latitude 27°8’40”: “O porto que, com razão, leva o nome de Porto Belo, o qual tem a vantagem de não possuir nenhuma desembocadura de rio, não correndo, assim, o risco de um assoreamento, como acontece em muitos portos brasileiros”.

A seguir, descreveu “uma pequena ilha, de aproximadamente 300 jeiras [na verdade, 36 hectares], a Ilha João da Cunha, formada por um único morro de diorito. Para o lado do mar a ilha é íngreme, a parede de 8 a 10 metros de largura e 25 metros de altura apresenta em toda a sua área aqueles sinais misteriosos”.

Emil Odebrecht, o autor das fotos e das informações usadas no artigo, contou ao compatriota que não pôde abarcar no visor de sua câmera toda a extensão da rocha, uma vez que não havia em frente a ela um ponto de apoio seguro. Também notou que as inscrições na parte central da pedra — hoje em dia conhecida como Pedra da Cruz — estavam danificadas, provavelmente em razão de queimadas (em seu livro sobre Porto Belo, Dieter Kohl propõe que o estrago foi produzido pela dinamite dos caçadores de tesouros). Para garantir que parte delas aparecesse no negativo, o engenheiro pintou-as com tinta branca. Quem acompanhou-o na expedição tampouco se pôde precisar (talvez alguns deles fossem moradores do lugar).

As inscrições rupestres atualmente são um dos atrativos da ilha. Na foto, Dieter Kohl (esq.), Alexandre Stodieck (centro) e Arão Mafra Filho, gerente do empreendimento

 

O pesquisador sentiu-se incapaz de propor sentido às figuras que as fotografias de Emil lhe mostravam. Cogitou que a solução do enigma pudesse sair do estudo de outros lugares onde soube haver inscrições similares, como a Ilha do Arvoredo, ao norte da Ilha de Santa Catarina, a Ilha Grande, localizada na entrada do porto de São Francisco, e “numa rocha no meio da mata distante umas cinco horas de Blumenau” (Adnir Antônio Ramos, um pescador e antropólogo de Florianópolis que esteve em setembro do ano passado divulgando suas ideias em um evento em Porto Belo, tem uma solução original para o mistério: os desenhos seriam representações do ciclo da vida).

Assim como reconheceu sua incapacidade de compreender a mensagem deixada pelo “Homem do Sambaqui” — como é referido hoje em dia o povo responsável pelas inscrições rupestres no litoral catarinense —, A. Saeftel admirou-lhe o engenho, especialmente porque realizado sem o concurso do ferro: “Com certeza, os desenhos foram feitos com ferramentas de pedra, um trabalho que deve ter demorado bastante em função do tamanho e da extensão considerável das imagens, bem como da dureza da rocha. Outrossim, são provas de que os antigos habitantes da costa estavam em um estado cultural incomparavelmente mais alto que seus descendentes atuais. Eles deviam ter, para alcançar as ilhas, canoas mais resistentes do que aquelas feitas de cascas de árvores, as quais ainda estão em uso pelos bugres do interior”.

Mais importante é que esse testemunho em pedra continua entre nós, ao alcance de uma caminhada pela trilha ecológica mantida pelo empreendimento Ilha de Porto Belo. Merece uma visita.